O estilo CazéTV de cobrir Olimpíadas veio pra ficar — e traz lições sobre a função do que chamamos de jornalismo
A cobertura olímpica da CazéTV reforça o que aprendemos com aquele "É TETRAAA" do Galvão em 1994.
A Copa de 1994 deixou diversas imagens icônicas. Para o jornalismo esportivo, essa aqui foi talvez a mais relevante:

Galvão Bueno abraçando Pelé e Arnaldo Cezar Coelho gritando sem parar “Acaboooouuu!!! É Tetraaaaaa”. Aquilo foi catártico e também diferente.
Sim, narradores sempre foram muito importantes na cultura esportiva brasileira, desde o rádio. Neutralidade nunca foi o forte — há muitos narradores-torcedores, especialmente quando o Brasil está em campo. Mas até 94 só estávamos acostumados a ouvir suas vozes, para ilustrar e animar a informação, que era o jogo.
Mas o grito de “É Tetra”, pré-internet e redes sociais, pode ter sido o primeiro React viral da TV brasileira. Para quem é menos jovem: React* é um estilo de vídeo comum em plataformas de vídeo como Youtube/TikTok/Twitch em que o interesse não é apenas no que está sendo visto, mas na reação de alguém àquilo.
Há algumas teorias científicas que explicariam por que nos interessamos pelos reacts. Podemos ter neurônios-espelho, o que significa que de alguma forma sentimos o que sentem outras pessoas quando vimos/ouvimos as suas emoções. Os sons de risadas em sitcoms antigas fazem as piadas parecerem ligeiramente mais engraçadas; os apresentadores de programas policiais encarando com indignação o criminoso na tela deixam espectadores mais interessados, pela raiva. Na mídia, há vários exemplos da importância de emoção (ou simulação de) para aumentar o engajamento da audiência.
E quando a emoção é genuína, esse engajamento é ainda maior. Por isso que o clipe de Galvão gritando se eternizou. Por isso que quando repórteres choram ou abraçam vítimas de tragédias nós choramos junto e a coisa viraliza.
Jornalistas acreditam que a sua função principal é “informar”. E não há informação no abraço, no grito, no choro com o atleta. Não há qualquer “jornalismo”, no sentido clássico, quando Guilherme Pereira, da Globo, chorou ao entrevistar o surfista Ítalo Ferreira, no Japão. Mas não consigo lembrar de um momento “jornalístico”, de trazer informação relevante, mais marcante do que aquele durante aquelas Olimpíadas. Tanto que o próprio repórter virou notícia.

Essas situações podem chamar a atenção apenas porque são pouco usuais. Mas elas também indicam a possibilidade de que que em alguns eventos o trabalho principal do jornalismo não é “informar”. Agora que temos acesso mais rápido às reações do público**, parece que a audiência gosta bastante quando uma jornalista é também um avatar, um neurônio-espelho para as emoções. Aqui de casa estávamos felizes, tristes ou orgulhosos, e o enviado especial lá em Paris era a única pessoa que fisicamente podia externar isso para um atleta.
O que me leva à CazéTV.
Casimiro Miguel, que cursou mas não terminou a faculdade de jornalismo, tinha uma carreira normal no Esporte Interativo e SBT. Mas ficou famoso mesmo pelos seus reacts na Twitch. Já no início de 2022, mais de 500 mil pessoas “assistiram” com ele o documentário do Neymar na Netflix, um recorde da Twitch.
Algumas pessoas não entendiam muito bem o fenômeno. Explicava que Cazé é aquele seu amigo do trabalho ou da faculdade engraçado, sempre com ótimas sacadas, que você se diverte vendo um jogo ou qualquer bobagem junto. Em uma época de distanciamento social, ele foi importante pra muita gente. Rimos dele dando risada, ou ficamos incrédulos vendo com ele alguém que “meteu essa”.
Este estilo, de alguma forma centrado no react, é potencialmente o ideal para uma cobertura de Olimpíadas, se você parar para pensar. Ou no mínimo pode ser mais apropriado que o jornalismo clássico, que tem como objetivo primordial “trazer a informação.”
Maratonei (um termo adequado) a cobertura da CazéTV em Paris 2024. Pela minha impressão, os objetivos — alguns declarados, outros implícitos — eram, em ordem de relevância:
- Dar mais visibilidade aos atletas, fortalecendo as suas modalidades e dando a dimensão heróica a seus feitos (Vide os mutirões);
- Emocionar e divertir (Ver o programa da Fernanda Gentil, participações do Defante, palavrões liberados, microfone aberto para comentaristas contarem histórias pessoais);
- Informar
Esses dois vídeos são exemplares (clique para assistir):


Que fique claro: eu gosto de informação. Não quero que o jornalismo mais “clássico” acabe. É realmente legal ter narradores e comentaristas que entendem das modalidades e conseguem explicar o que é um Shido ou um Kickflip Back Smith. Sem informação uma cobertura pode ficar rapidamente enfadonha, claro. Mas não é ela que necessariamente segura a atenção e a emoção do público, especialmente em esportes que não estamos acostumados a acompanhar.
Acho que jornalistas poderiam se beneficiar se tiverem a cabeça mais aberta sobre o real “Job to be done” (JTBD) do jornalismo, e que ele pode ser diferente em diferentes situações.
Cobrir eleições ou políticas públicas? Precisamos de informação pura, imparcial, análise. Como aprendemos na faculdade. E qual o JTBD em catástrofes? Talvez menos detalhes sobre o que aconteceu, os #disasterporn de gente sofrendo, e mais mensagens sobre gestos de solidariedade que incentivem as pessoas a fazer sua parte (Globo tem feito um bom trabalho nisso, diga-se), além de análise do que fazer para evitar coisas parecidas.
No caso das Olimpíadas, é possível que o trabalho a ser feito seja alinhado ao que a CazéTV trouxe. Os jogos olímpicos, desde a Grécia Antiga, são um momento para celebração de homens e mulheres extraordinários, de criação de mitos, incentivo ao esporte e espírito olímpico, união dos povos, etc. O público até inconscientemente demanda isso.
Então o melhor que o fotojornalista pode fazer é criar uma pintura que dê a dimensão da perfeição de Gabriel Medina, ou melhor: que crie uma ilusão de alguém larger than life.

E o melhor que o narrador pode fazer quando estamos nos divertido, maravilhados com uma atuação histórica como a de Stephen Curry da seleção americana de basquete, é gritar. E quando não há mais o que falar, a tela com a reação das pessoas na bancada aparece na tela. Como se para sublinhar o que estamos vendo. Abrimos um sorriso ainda maior. O objetivo de engrandecer o feito olímpico é realizado.

Esse estilo não é exclusivo da CazéTV. É evidente que narradores, comentaristas e repórteres estão com mais liberdade para se expressar e demonstrarem sentimentos em outras emissoras. Se você assistir isso aqui na Sportv e não ficar com a voz embargada ao final da apresentação, quando a narradora tem a voz embargada, bem... Talvez o seu neurônio-espelho esteja com defeito.
E agora?
Escrevi tudo isso depois de ver muitos jornalistas, especialmente mais veteranos, criticando a cobertura da CazéTV. Pessoas falando que ali tínhamos influencers demais e jornalismo de menos. É uma análise ao mesmo tempo verdadeira — o espaço dedicado à informação pura era maior na concorrência — e também um pouco míope.
Existia uma clara demanda reprimida para esse tipo de cobertura. É claro que sempre teremos públicos diferentes para formatos e estilos diferentes. O casimirismo não é a única forma de apresentar algo. Mas é possível que seja o mais interessante para uma enorme parte do público, e está mais alinhada com o espírito olímpico.
Reconhecer isso aponta caminhos interessantes para a profissão, e permite repensar outras coberturas. No mínimo mostra que é possível levar a leveza a sério.
* Antes de chegar à cultura ocidental, Reacts eram bem comuns na cultura televisiva japonesa. Você já deve ter visto o vídeo de pessoas reagindo ao vídeo principal no cantinho da tela. Tem até um termo pra isso, waipu.
** Pessoas mais jovens não sabem disso, mas até o advento do jornalismo online, com instrumentos como Google Analytics, e depois as redes sociais, com comentários em tempo real, não tinha muito bem como saber o que o público pensava sobre o que o jornalismo produzia.